Querido Charlie, esta noite tive um sonho que, para ser
franca, me envergonho de contar, pois não vejo nisso um desejo verdadeiro de
minha parte. Mas quem nunca? De vez em quando, me pego ressuscitando momentos
em que esse tipo de pensamento se insinuou, de ambos os lados, mas que jamais
se consumou. Ontem, li Missa do Galo, conto de Machado de Assis escrito
em 1883, mas que permanece atual — como tudo o que ele escrevia. Se há um
segredo para a longevidade de um escritor, é este: falar sobre aquilo que
atravessa o tempo, os sentimentos e dilemas que sempre pertencerão à humanidade.
Esse conto fala sobre aqueles olhares furtivos, como os que se escondem nos
recantos das grandes tragédias amorosas do Realismo, os sorrisos silenciosos
trocados sem palavras, o entendimento implícito de que algo transgressor está
prestes a acontecer, e o afastamento do corpo como um gesto de contenção, já
que a culpa se consumou na mente antes de qualquer ato.
Assim que terminei a leitura, deixei a música Illicit
Affairs, de Taylor, tocar sem parar, repetindo-se um milhão de vezes, um
milhão de pequenas vezes, até agora, enquanto escrevo. E, aos poucos, as
lembranças começaram a se formar, fragmentadas, desordenadas. Charlie, vou te
contar a história, mas não sei dizer se aconteceu em 1861 ou 2024. E, até hoje,
ainda me questiono sobre as verdadeiras intenções deles.
Eu estava lendo Os Três Mosqueteiros, de Dumas,
quando entraram na saleta, com os olhos pesados, de quem ainda não havia
dormido. Perguntaram, acredito que despretensiosamente, apenas para puxar
conversa, se eu já tinha lido Madame Bovary e Anna Karenina. Eles
escutavam com atenção enquanto eu falava sobre livros, reclamava sobre o quadro
de Cleópatra e recebia elogios pela minha eloquência e minhas pernas. De vez em
quando, se aproximavam, quase como se cochichassem, para não perturbar o
restante da casa. Não sei exatamente o que aconteceu, se foi o efeito do álcool
ou as reverberações das minhas fantasias literárias, mas senti uma onda de
calor me percorrendo. Confesso que fui fraca, um misto de medo e desejo, e
preferi que o peso do pecado fosse deles, não meu; alguns mandamentos
quebrando-se, repetidamente, um milhão de pequenas vezes.
Mas então, fui acordada para a realidade com a chegada do
meu transporte. Saí dali, corada, da cor do capuz deles, e a imagem dos dois
ainda persistia em minha mente. Coloquei All Too Well para tocar
enquanto seguia pela estrada menos movimentada. No outro dia, agimos como se
nada tivesse acontecido, porque, no fundo, será que realmente aconteceu? Como
aqueles encontros clandestinos que se iniciam com um olhar e vão morrendo,
morrendo, morrendo... um milhão de pequenas vezes.
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