Machado de Assis, em sua fase realista, como em Dom Casmurro e no conto Pai Contra Mãe, constrói um universo literário impregnado de um pessimismo corrosivo, no qual os personagens, enredados em suas fraquezas morais e nas armadilhas de uma sociedade brasileira marcada pela hipocrisia e pela violência estrutural da escravidão, raramente encontram redenção.

Em contrapartida, Dostoiévski, em obras como Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo, mergulha nas profundezas da psique humana, dissecando as ações de seus personagens até os limites do desespero e da culpa, mas sempre com uma centelha de fé na possibilidade de redenção. Sua visão, ancorada em uma espiritualidade cristã, sugere que o sofrimento, como o de Raskólnikov, pode conduzir a uma transformação transcendente, a um reencontro com Deus ou com uma humanidade renovada, ainda que o caminho seja tortuoso e nunca isento de ambiguidades. Enquanto Machado nos confronta com a impotência diante do grotesco social, Dostoiévski oferece uma esperança, ainda que frágil, de que a alma humana pode transcender suas próprias trevas.

Em Pai Contra Mãe, Machado narra a história de Cândido Neves, ou Candinho, um homem pobre, incapaz de manter ocupações como tipógrafo ou caixeiro devido ao seu “caiporismo” e orgulho, torna-se caçador de escravos para sustentar sua esposa Clara e seu filho recém-nascido. Ele captura Arminda, uma escrava fugitiva grávida que implora por liberdade, arrastando-a pelas ruas do Rio de Janeiro até a casa de seu senhor, onde ela sofre um aborto no corredor. Com os cem mil-réis da recompensa, Candinho consegue impedir que seu filho seja enviado para a Roda dos Enjeitados, levando-o de volta para casa com a anuência da tia Mônica, que aceita cuidar da criança graças ao dinheiro. A narrativa expõe a tragédia de indivíduos enredados na violência do sistema escravista.

Nesse contexto, Machado escreve: "Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel." A "máscara grotesca" refere-se diretamente à máscara de folha-de-flandres, um aparelho desumano usado para impedir a embriaguez dos escravos, tapando-lhes a boca e deixando apenas três buracos – dois para os olhos e um para respirar. Contudo, simboliza, em sentido mais amplo, a deformação moral e social imposta pela escravidão.

A frase reflete o ceticismo de Machado sobre a condição humana: a “ordem social e humana” exige sacrifícios grotescos, como a violência institucionalizada contra os escravos, que desumaniza tanto a vítima quanto o algoz. Candinho se torna cúmplice do sistema por necessidade, revelando como a estrutura social corrompe até aqueles que apenas buscam sobreviver. A citação critica a hipocrisia de uma sociedade que justifica instrumentos cruéis, como a máscara, ou profissões como a de caçador de escravos, como necessárias para manter a sobriedade, a honestidade e a proteção da propriedade, ignorando o custo humano envolvido. O grotesco reside na contradição entre a fachada de ordem e a brutalidade que a sustenta, enquanto o cruel aponta para a destruição de vidas em nome de uma estrutura social falida, revelando a visão pessimista de Machado, que não oferece redenção, apenas a exposição de um sistema que corrompe todos os envolvidos.

A frase final de Pai Contra Mãe, “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”, ao revelar a indiferença de Candinho diante do aborto da criança negra de Arminda enquanto celebra a sobrevivência de seu filho branco, ecoa as desigualdades raciais persistentes na atualidade. Mesmo em contextos de pobreza, uma criança branca tem mais chances de prosperar devido a privilégios estruturais, perpetuando um sistema que favorece uns em detrimento de outros. Essa dinâmica ressoa na citação de Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov, “o réptil devorando outro réptil”, que ilustra a crueldade humana, na qual os detentores de capital, poder ou cultura aceita sobrevivem às custas dos marginalizados. Trata-se de uma lógica próxima do darwinismo social, que justifica a exclusão como “seleção natural” nas sociedades contemporâneas. Essa naturalização do mal, descrita por Hannah Arendt como a “banalidade do mal”, manifesta-se na conformidade com normas sociais e legais que, como na escravidão de outrora, hoje desumanizam grupos como os imigrantes. Não se trata apenas de criticá-los por sua condição de deslocamento, pois seria possível discutir a questão migratória de modo ético, considerando fronteiras e regras nacionais. O que marca a violência é o modo como essas pessoas são tratadas como sub-humanas, sem direitos nem reconhecimento, reduzidas a um problema a ser eliminado ou ignorado. Dostoiévski, ao propor a responsabilidade coletiva pelo todo, contrasta com o ceticismo de Machado, sugerindo que a redenção exige reconhecer o outro como parte da humanidade comum, desafiando a banalidade do mal que aceita a exclusão como “normal”. Ao expor a “máscara grotesca” da ordem social, o conto de Machado permanece profundamente atual, não apenas como denúncia de um passado escravocrata, mas como alerta sobre as violências naturalizadas que ainda estruturam o presente.

 

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